A obsolescência planejada tem sido amplamente utilizada por empresas para garantir um fluxo contínuo de receita. Essa prática, que incentiva os consumidores a substituir produtos regularmente, costuma tomar forma por 2 estratégias principais: limitar deliberadamente a vida útil dos produtos, ou introduzir novos modelos que tornam os anteriores menos atrativos.
No entanto, especialmente após a Pandemia e através da chegada da Geração Z ao mercado, vimos uma acelerada conscientização sobre sustentabilidade e o fortalecimento de valores pessoais contrários ao desperdício, ou ainda mais ativamente, o estímulo à compra de produtos de “segunda mão” (há uma hashtag específica no TikTok chamada #thrifttok, a qual ajuda na validação social).
Nesse momento, é provável que você já comece a pensar que essas tendências poderão impactar a forma como compradores e consumidores enxergam a obsolescência planejada. Pensando nisso, este artigo propõe como a transição para o conceito de Product as a Service (Produto como Serviço), pode oferecer uma alternativa viável para as empresas se adaptarem às demandas de um mercado em transformação, mantendo a competitividade e atendendo às expectativas de consumidores mais conscientes.
A Mudança nos Valores Pessoais e Sociais
Historicamente, a obsolescência planejada garantiu um ciclo de consumo acelerado, impulsionando as vendas e assegurando a lucratividade das empresas. Um dos casos mais icônicos é o Cartel Phoebus, na década de 1920, quando fabricantes de lâmpadas concordaram em reduzir deliberadamente a vida útil de seus produtos para estimular novas compras.
Embora eficaz no contexto econômico e social daquela época, essa abordagem seria muito questionada hoje, em função das preocupações ambientais e sociais. A razão disso é porque nos últimos anos, alguns valores pessoais e sociais mudaram drasticamente.
Consumidores estão mais conscientes do impacto ambiental de suas escolhas e demandam produtos que reflitam essas preocupações. O pior é que eles não têm a intenção de pagar um premium sobre isso, pois consideram que é uma “obrigação das empresas”. Pelas restrições de orçamento das famílias brasileiras, essa atitude de “quero, não nego… mas não pago mais” é ainda mais presente.
Adicionalmente, reguladores e consumidores vêm incrementando a pressão pela circularidade, demando que materiais sejam reutilizados, reciclados ou remanufaturados. Neste caso, como já comentado, usar algo reciclado ou de segunda mão começa a ser “ok” e até “cool”.
Essa tendência será reforçada pela Geração Z e sua frugalidade no consumo, priorizando qualidade e funcionalidade em vez de excesso, além da frase já batida mas real de “valorizar mais experiências que a posse”. Essa frugalidade também é afetada por um cenário econômico mais desafiador, e com potencialmente menos empregos em função do uso da Inteligência Artificial Generativa e seus agentes, para tarefas típicas de profissionais em início de carreira.
Além da potencial resistência dos consumidores, temos também uma crescente gestão dos reguladores desafiando esse modelo. Por exemplo, a União Europeia aprovou leis exigindo que produtos sejam mais reparáveis, forçando empresas a reconsiderarem suas estratégias de design. A transição de um modelo baseado no consumo descartável para um mais duradouro é crucial para alinhar-se às expectativas da sociedade.
A oportunidade do “Produto como Serviço” (Product as a Service, ou PaaS)
Há diversas formas de se aproveitar as tendências para gerar receita recorrente, mas também há estratégias mais sutis e inteligentes para que consumidores e usuários se sintam beneficiados pela obsolescência planejada. No entanto, acredito que o conceito de “Produto como Serviço” (PaaS) merece ser investigado por você, pois vem crescendo como modelo de negócios e pode se tornar um daqueles problemas que chegam “aos poucos e, de repente, de uma vez”, sendo muito mais caro reagir a concorrentes do que planejar a sua mudança gradual.
O modelo PaaS é uma abordagem que transforma produtos tradicionais em serviços oferecidos sob demanda. Em vez de vender um produto físico ao consumidor, as empresas oferecem acesso à sua funcionalidade, mantendo a propriedade do bem. Este modelo tem como principais pilares a sustentabilidade, a eficiência econômica e o fortalecimento do relacionamento com o cliente.
Exemplos incluem soluções como aluguel de eletrodomésticos, plataformas de assinatura para eletrônicos e serviços automotivos baseados no uso, como leasing ou car-sharing. Empresas pioneiras têm demonstrado que o PaaS pode substituir modelos baseados em obsolescência planejada, garantindo rentabilidade e relevância, como demonstram os exemplos a seguir:
· Tecnologia: empresas do segmento têm explorado o modelo de assinatura para celulares, no qual os consumidores pagam um valor mensal para usar sempre os modelos mais recentes, com manutenção incluída. Isso elimina a necessidade de compra e promove a reutilização de componentes antigos.
· Mobilidade: a Tesla oferece atualizações de software que melhoram o desempenho dos veículos remotamente, garantindo que os clientes não precisem adquirir novos carros para ter acesso às últimas inovações tecnológicas.
· Moda Sustentável: marcas como Rent the Runway permitem que clientes aluguem roupas de luxo por um período, promovendo a reutilização e reduzindo o impacto ambiental.
· Tire as a Service: a Michelin adotou o modelo de “Tire as a Service”, onde clientes empresariais pagam pelo uso de pneus em vez de adquiri-los diretamente. Isso inclui manutenção preventiva, substituição e reciclagem, promovendo a longevidade dos produtos e reduzindo custos para os usuários.
· Lavadoras como Serviço: o modelo “Laundry as a Service” já é oferecido em alguns mercados, instalando-se máquinas de lavar em condomínios e cobrando por ciclo de lavagem. Isso elimina a necessidade de compra e reduz os custos iniciais para os clientes, enquanto promove a manutenção eficiente dos equipamentos.
· Impressão como Serviço: presente há algum tempo no mercado corporativo, empresas do segmento estimulam os clientes a pagarem uma assinatura mensal baseada no número de páginas impressas. O serviço inclui envio automático de cartuchos antes que a tinta acabe, garantindo conveniência e eliminação de desperdícios.
· Philips Lighting (Signify): talvez o exemplo mais icônico para o texto seja o da Signify, que implementou soluções de iluminação como serviço em cidades como Los Angeles e Copenhague. Seus sistemas inteligentes monitoram e ajustam automaticamente os níveis de iluminação, reduzindo custos e desperdícios. Esse modelo é um óbvio e interessante contraponto às práticas do Cartel Phoebus descritas anteriormente.
Benefícios do PaaS para as empresas
Há uma expressão muito utilizada no mundo dos negócios que é “as pessoas não precisam de uma furadeira, mas sim de um furo na parede”. Antes de mais nada, quero dizer que adoro uma boa furadeira e tenho uma em casa, porque me dá segurança e liberdade. No entanto, a verdade é que as pessoas não querem um furo na parede… elas querem pendurar um quadro ou um toalheiro. Nesse momento, podemos entender o conceito macro de que um Produto por se tornar um Serviço, pois no final das contas, o maior benefício ao usuário do produto é o serviço que ele faz.
No entanto, é perfeitamente possível antecipar pelo menos 3 benefícios do PaaS para as empresas:
Sustentabilidade e Redução de Resíduos: o PaaS incentiva o design de produtos mais duráveis e modulares, reduzindo significativamente o desperdício. Quando as empresas mantêm a propriedade dos bens, elas têm maior interesse em maximizar sua vida útil, o que é benéfico para o meio ambiente e para os consumidores.
Relacionamento Continuado com o Cliente: ao transformar produtos em serviços, as empresas estabelecem uma relação mais próxima e contínua com os clientes. Isso permite a personalização dos serviços e uma melhor compreensão das necessidades dos consumidores.
Fluxo de Receita Previsível: modelos baseados em assinatura ou pay-per-use garantem receitas recorrentes e previsíveis, reduzindo a dependência de vendas pontuais e aumentando a estabilidade financeira da empresa.
Estratégias para Implementar o PaaS
- Redefinição de Valor: Empresas devem focar na entrega de resultados e benefícios para os clientes, em vez de apenas vender itens físicos. Por exemplo, em vez de vender impressoras, oferecer “serviços de impressão” que incluam suprimentos e manutenção.
- Uso de Tecnologia Digital: Plataformas digitais, IoT e inteligência artificial são essenciais para monitorar o uso, prever manutenções e otimizar operações. Essas ferramentas também permitem personalização e eficiência no atendimento ao cliente.
- Economia Circular: Adotar práticas de reaproveitamento de produtos, como reciclagem e recondicionamento, é uma forma de reduzir custos e atender às expectativas ambientais.
- Parcerias e Ecossistemas: Empresas podem colaborar com parceiros para criar soluções integradas que melhorem a experiência do cliente. Um exemplo é a aliança entre fabricantes de eletrodomésticos e startups de manutenção para oferecer serviços abrangentes.
Precificando o PaaS
A precificação no modelo PaaS exige uma abordagem estratégica que equilibre o custo, o valor percebido pelo cliente e a competitividade no mercado. Diferente de um modelo tradicional de venda, onde o preço reflete um pagamento único, o PaaS depende de assinaturas, uso ou resultados entregues.
Componentes-Chave da Precificação:
- Custo Total de Propriedade (TCO): Empresas devem considerar não apenas os custos de produção, mas também de manutenção, suporte e atualizações ao longo do ciclo de vida do produto.
- Valor Percebido: Clientes tendem a valorizar soluções que oferecem conveniência, personalização e sustentabilidade. O preço deve refletir esses benefícios.
- Modelo de Uso: Preços baseados em uso ou resultados (ex.: “pay-per-use” ou “outcome-based pricing”) tornam o modelo mais acessível e flexível para os clientes.
- Escalabilidade: Estruturas de preço devem permitir ajustes conforme o cliente amplia ou reduz sua utilização do serviço, sendo absolutamente transparentes.
Empresas de sucesso neste modelo, como a Adobe, utilizam assinaturas mensais para acesso ao Creative Cloud, garantindo receitas recorrentes e fidelidade do cliente. Outro exemplo é a Rolls-Royce, que oferece “Power by the Hour” em motores de aviação, cobrando pelas horas de uso e incluindo manutenção no custo.
Barreiras e Soluções na Transição
Como esperado em qualquer transição, há barreiras e até riscos na implementação de uma estratégia PaaS. Levantei os que julguei mais relevantes:
Riscos para os custos: não há como negar que há necessidade de se criar competências para operar no modelo SaaS. Desenvolver competências nas pessoas custa dinheiro e muito tempo, seja contratando novas pessoas ou treinando as atuais.
Implementar outras competências corporativas pode custar ainda mais, requerendo quase sempre investimentos em tecnologia em todo a cadeia, desde a “digitalização” dos produtos efetivo, os sistemas de monitoramento, gestão de dados e plataformas de atendimento, até o sistema de cobrança dos clientes.
Riscos para a Receita: imagine o exemplo da Michelin, do “pneu como serviço”. Pense em você apresentando isso na imprensa… como o varejo que vende os seus pneus reagiria? Ainda que possa haver um acordo de usá-los como canal de faturamento, antecipo que haveria uma reação negativa, e talvez uma redução nas vendas da sua marca e aumento das outras, nem que seja como ferramenta de negociação.
Agora vamos pensar que um grande cliente corporativo deixa de comprar pneu físico e faz uma assinatura por 2 anos. Se o líder de Vendas de “Pneu Físico” for diferente do líder de “Pneu por assinatura”, teremos um sério conflito interno… e você acha que o líder de Pneu Físico irá apresentar o serviço de “por assinatura” aos seus clientes.
Finalmente, no momento inicial, entra muito mais dinheiro no caixa você vender 200 pneus, do que alugar 200 pneus a uma taxa mensal, por 2 anos. Ou seja, você também poderá afetar o caixa da empresa.
É primordial concordar esses riscos no alto mais alto nível da empresa, preparar planos de mitigação e deixar espaço suficiente no orçamento para cobrir potenciais movimentos.
Adaptação do Cliente ou Consumidor: educar o mercado sobre as vantagens do modelo é fundamental. Campanhas de marketing devem enfatizar benefícios como conveniência, custo reduzido e impacto ambiental positivo. Além disso, criar programas piloto pode ajudar a conquistar a confiança dos clientes ao demonstrar os benefícios na prática. Outro elemento que precisa ser levado em conta, é o receio da empresa em pagar mais pelo serviço do que pela aquisição, portanto o período de prova também deve considerar esse “risco”, além da precificação transparente que já comentei.
Conclusão
A transição da obsolescência planejada para o modelo de Produto como Serviço representa uma evolução necessária para atender às demandas de um mercado em transformação. Essa abordagem não apenas responde às preocupações ambientais e sociais, mas também cria oportunidades de inovação e rentabilidade sustentável.
Empresas que adotam o PaaS não estão apenas ajustando seus modelos de negócios, mas também moldando o futuro do consumo. Ao focar em sustentabilidade, valor ao cliente e eficiência operacional, essas organizações se posicionam para liderar em um mundo onde a responsabilidade social é tão importante quanto a lucratividade.
O caminho exige planejamento estratégico, investimentos em tecnologia e capacitação, além de uma revisão de processos internos centrada na experiência futura do cliente com os serviços. No entanto, os benefícios são claros: fidelização de cliente, redução de desperdício e um modelo de negócios alinhado às expectativas da sociedade contemporânea. O PaaS não é apenas uma tendência; é uma necessidade para construir um futuro mais sustentável e inovador.