No mundo da tecnologia, existem os tais “pontos de inflexão”, momentos nos quais a ciência aplicada atinge um estágio superior, algo transformador para a aceleração daquela tecnologia.
No dia 01 de junho de 2024 vivemos um desses momentos, com a criação do gêmeo digital do Caenorhabditis elegans (C. elegans), um ponto de inflexão biotecnológico, com impactos potencialmente transformadores para a modelagem computacional de organismos vivos.
Parece loucura, né?… então vamos com calma entender o que é isso e porque isso importa
A tecnologia dos gêmeos digitais
O conceito de Digital Twin foi apresentado pela primeira vez em 2002, por Michael Grieves. Em sua essência, um gêmeo digital é uma representação virtual, mas dinâmica, de um objeto, sistema ou processo físico. Diferentemente de um modelo 3D estático, esse “clone” virtual está em constante evolução, alimentado por dados de sensores embarcados no ambiente físico, mas monitorado, testado e ajustado por modelos de inteligência artificial.
Esse fluxo contínuo de informações permite que o modelo virtual reflita fielmente as mudanças que ocorrem no ambiente físico “no passado ou presente”, mas também prever mudanças ou impactos “no futuro”, através de simulações. Com o poder avançado das tecnologias de Internet das Coisas, Computação em Nuvem e Aprendizado de Máquina, essa tecnologia se expandiu para diversas indústrias, como podemos ver nos casos de uso a seguir:
1) Casos “tradicionais”, ligados à Indústria de Manufatura ou Extração
- Metaverso Industrial: Na Siemens, gêmeos digitais estão integrados ao metaverso industrial, permitindo simulações em tempo real de linhas de produção e redução de custos operacionais, seja através de manutenção preditiva ou otimização de recursos utilizados na produção;
- Aeronaves e Automóveis: Tesla cria um gêmeo digital de cada veículo vendido, utilizando dados em tempo real para ajustes de desempenho e futuras inovações. Algo similar é realizado na indústria de “Pneu como Serviço”, no qual as fabricantes de pneus alugam os seus pneus e oferecem a garantia, através de análises e simulações, de que irão funcionar por muito tempo;
- Petróleo e Gás: Empresas de petróleo utilizam gêmeos digitais para otimizar o fluxo de hidrocarbonetos e prever falhas em equipamentos, economizando milhões, mas ao mesmo tempo garantido a segurança de seus funcionários.
2) Casos na Educação e na Economia Criativa
- Educação: em especial através do uso de blockchain e deep learning, estão sendo criados gêmeos digitais educacionais, permitindo ambientes de aprendizado personalizados, os quais buscam otimizar como a informação é entregue para cada aluno, buscando otimizar o seu nível de aprendizado;
- Museus Virtuais: Gêmeos digitais de exposições e estruturas culturais promovem acessibilidade e preservação. Recentemente, o Vaticano revelou seu primeiro Digital Twin, criado em colaboração com a Microsoft, para preservar digitalmente um dos maiores ícones culturais e religiosos do mundo. O gêmeo digital permite visualizações detalhadas, restaurações virtuais e até visitas guiadas interativas, ampliando o acesso global ao patrimônio cultural. Da mesma forma, após o triste incêndio na Catedral de Notre Dame em 2019, engenheiros utilizaram um gêmeo digital pré-existente para planejar sua restauração. Modelos tridimensionais, enriquecidos com dados arquitetônicos históricos, permitiram recriar com precisão os elementos perdidos, demonstrando como os gêmeos digitais podem preservar o passado enquanto moldam o futuro.
3) Casos nos quais o conceito foi “emprestado”, para englobar iniciativas que necessariamente não se encaixam na teoria, mas são simplificados por ela
- Gêmeo da Terra: A União Europeia lançou um modelo digital do planeta para monitorar mudanças climáticas e testar estratégias de mitigação. Há bastante discussão se isso é mesmo um gêmeo digital da Terra ou “apenas” um super modelamento do clima. Digo “apenas” entre aspas porque os modelos de previsão de clima, de maneira ampla, são extremamente complexos e merecem um texto específico, em algum momento;
- “Clones” digitais: são representações virtuais que replicam comportamentos, decisões e características de indivíduos reais. Combinando IA generativa e dados pessoais, é possível criar avatares digitais, que agem e se comunicam de maneira semelhante às pessoas que representam. Alguns casos de uso interessantes: Replika: Oferece amigos virtuais personalizados, que aprendem e evoluem com base nas interações humanas. Sim, você já viu filmes com essa ideia… mas ela está cada vez mais próxima… HereAfter AI: Desenvolve avatares digitais baseados em histórias pessoais, para preservar memórias e interagir com futuras gerações. É você poder conversar com alguém que perdeu há muitos anos, e obter conselhos, não apenas em suas orações, mas baseados em “dados”, em como aquela pessoa reagiria àquela pergunta. Uau, não?
4) Casos na Saúde, Medicina e Biologia: os que acho mais fascinantes
- Gêmeos Digitais Humanos: Projetos como o “Virtual You” estão criando simulações digitais de órgãos humanos para prever o impacto de tratamentos personalizados, assim como reduzir testes invasivos e prevenir doenças.
- Pesquisa Genética: Modelos bio-inspirados, como o nematódeo C. elegans, estão ajudando cientistas a entender como sistemas biológicos podem ser replicados virtualmente.
O caso do tal nematódeo
Em junho de 2024, pesquisadores publicaram um estudo intitulado “Bio-inspired augmented reality: an interactive, digital twin of C. elegans”, detalhando a criação de um gêmeo digital interativo desse organismo, ou seja, a aplicação da tecnologia em sistemas biológicos!
O C. elegans é um organismo microscópico bastante utilizado na pesquisa científica, pois possui um sistema biológico relativamente simples e muito bem mapeado, o que permitiu replicar funções biológicas, incluindo a movimentação e os sinais neurológicos.
O desenvolvimento desse gêmeo digital envolveu diversas tecnologias:
- Modelagem Matemática: Os pesquisadores desenvolveram um modelo matemático que emula a atividade neuronal e muscular do C. elegans, permitindo a simulação de seus movimentos básicos de locomoção.
- Circuitos Eletrônicos: O modelo matemático foi implementado diretamente como um circuito eletrônico, possibilitando a realização de simulações físicas do comportamento do organismo.
- Realidade Aumentada (AR): A equipe integrou o gêmeo digital em um ambiente de realidade aumentada, permitindo visualizações tridimensionais interativas que complementam as figuras tradicionais do estudo.
Por que isso importa?
Este avanço é considerado um divisor de águas na biotecnologia, já que pela primeira vez foi possível replicar digitalmente um organismo vivo com alto nível de precisão. Isso abre caminho para aplicações como:
- Simulação de Doenças: Testar novos tratamentos em ambientes digitais antes de experimentá-los em humanos. Com um gêmeo digital funcional, pesquisadores podem testar medicamentos, terapias gênicas e protocolos de tratamento em um ambiente controlado. Isso acelera descobertas científicas e reduz os custos de pesquisa.
- Pesquisa Neurológica: Entender como sistemas nervosos simples funcionam, contribuindo para estudos mais complexos no futuro. Apesar de simples, o sistema nervoso do C. elegans ainda pode revelar muito sobre como neurônios se conectam e se comunicam e, com a versão digital, torna-se mais fácil isolar variáveis e observar como estímulos externos afetam comportamentos.
- Desenvolvimento de Tecnologias Educacionais: A integração com AR oferece recursos didáticos inovadores para o ensino de biologia e neurociência.
O sucesso nestas atividades permitirá, idealmente, a “modelagem” de soluções mais complexas:
- Integração com Impressão 4D: Criar estruturas biológicas dinâmicas, com materiais programáveis, que respondam a estímulos do usuário, do ambiente ou do organismo digital. Isso seria uma “bioimpressão 2.0”, já que seriam criados órgãos ou tecidos dinamicamente adaptáveis.
- Medicina (100%?) Personalizada: Desenvolver gêmeos digitais de órgãos ou sistemas humanos específicos, para simular respostas a tratamentos médicos.
Em especial nos 2 últimos exemplos, é possível antecipar um nível avançado de exclusão digital, o qual não tem nada a ver com falta de boa conexão de internet ou letramento digital, mas um privilégio “biotecnológico”. Em um cenário pessimista (e talvez distópico), poderíamos ser catalogados como cidadãos 1.0, 2.0, 3.0…
Podemos argumentar, no entanto, que o privilégio no acesso à saúde de primeira qualidade já existe, portanto em um cenário otimista, e talvez utópico, a biotecnologia avança tanto que algumas gotas de sangue já permitirão a customização de tratamentos, ou antecipação de possíveis doenças, mas para bilhões de pessoas.
Por que esse assunto foi escolhido em uma newsletter de Transformação e Tendências?
Imagino que essa pergunta pode ter passado pela sua cabeça, mas há 2 respostas simples:
1. A nova demografia: com a expressiva mudança na demografia global, qualquer tecnologia ou ciência que aponte ao aumento na expectativa de vida saudável e produtiva, merece o olhar atento de todos nós. É fundamental “reaprender” os impactos demográficos, mas isso será assunto para um texto futuro;
2. Convergência tecnológica: uma habilidade necessária para maximizar ganhos com tecnologia, é imaginar como algo desenvolvido para uma função que está todo mundo vendo e explorando (ex metaverso para joguinhos), pode se combinar à outra tecnologia (ex gemêos digitais) e gerar novos casos de uso.